Em uma decisão histórica, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou formalmente, nesta quinta-feira (16/12/2021) resolução intitulada Enfrentando os desafios das pessoas que vivem com uma doença rara e de suas famílias. O Brasil, na figura de seu Ministério das Relações Exteriores, o Catar e a Espanha tiveram papel fundamental na proposição inicial desta resolução.
Segundo a definição dada pela Portaria GM/MS nº 199, de 30 de janeiro de 2014, são doenças raras aquelas que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas a cada 2 mil. Em 80% dos casos, elas possuem origem genética, sendo que os 20% restantes podem ser causados por fatores ambientais, infecções virais ou bacterianas, alergias, processos degenerativos, proliferativos ou tóxicos, como produtos químicos ou radiações. Calcula-se que exista algo entre 6 mil a 8 mil doenças raras e que, no Brasil, estas acometam entre 7,5 milhões e 12,5 milhões de pessoas, numa estimativa conservadora. Em todo o mundo, acredita-se que mais de trezentos milhões de pessoas são afetadas por tais doenças crônicas, progressivas e incapacitantes, e que podem ser degenerativas, não raro levando ao óbito.
O esboço da resolução já havia sido aprovado por unanimidade em 15 de novembro de ???, em reunião do Terceiro Comitê (Direitos Humanos) da Assembléia Geral, e fora produto de um incansável esforço de mobilização global de pacientes e stakeholders capitaneado pelo Comitê de ONGs para Doenças Raras, pela Eurordis e pela Rare Diseases International.
A campanha, ora bem-sucedida, teve como objetivo “o reconhecimento de que as pessoas que vivem com doenças raras são uma população mal atendida, exigindo atenção urgente e imediata, bem como políticas nacionais e globais que levem em conta suas necessidades e contribuam para se alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, com seu apelo de ‘não deixar ninguém para trás’”.
Através desta resolução, os 193 Estados-membros da ONU exortam todos os países do mundo a fortalecer seus sistemas de saúde, especialmente em termos de atenção primária à saúde, a fim de fornecer acesso universal a uma ampla gama de serviços que sejam seguros, de qualidade, acessíveis, disponíveis e baratos, oportunos, e integrados clínica e financeiramente. Desta forma, acredita-se que as pessoas que vivem com uma doença rara estarão habilitadas a abordar suas necessidades, de modo a realizar seus direitos humanos, incluindo o direito ao mais alto padrão possível de saúde física e mental. Assim intenta-se melhorar a equidade em saúde e promover a igualdade, acabar com a discriminação e o estigma, eliminar lacunas na cobertura e criar uma sociedade mais inclusiva.
A resolução também incentiva os Estados-membros a adotar estratégias, planos de ação e legislação nacionais de modo a contribuir para o bem-estar das pessoas que vivem com doenças raras e seus familiares, incluindo a proteção e gozo de seus direitos humanos, de acordo com suas obrigações já previstas na legislação internacional.
Através desta resolução, os Estados-Membros são encorajados a abordar as causas profundas de todas as formas de discriminação contra as pessoas que vivem com doenças raras, por meio de ações de sensibilização, divulgação de informações precisas sobre estas, entre outras medidas. É também enfatizado o importante papel de fatores culturais, familiares, éticos e religiosos (incluindo o papel fundamental desempenhado por líderes religiosos) no tratamento, cuidado e apoio de pessoas que vivem com uma doença rara.
A Resolução também destaca a importância de uma educação de qualidade inclusiva e igualitária. Acrescenta que oportunidades de educação continuada não-discriminatória são essenciais para a participação plena, igualitária e significativa em todos os aspectos da vida social, cultural, política e econômica. Reconhece que as crianças que vivem com uma doença rara, em particular, podem enfrentar múltiplos desafios no acesso à educação de qualidade, devido a problemas de acessibilidade das instalações e ao emprego de métodos de ensino não adaptados a suas realidades, entre outros.
A resolução também reconhece a necessidade de fomentar a inovação e destaca a contribuição positiva que esta pode oferecer no sentido de promover a coesão social, reduzindo as desigualdades e ampliando as oportunidades para todos, incluindo pessoas que vivem com doenças raras e outras ainda mais vulneráveis. Nesse sentido, reconhece a necessidade de apoiar, agilizar e aumentar a atenção aos estudos sobre doenças raras.
A redação da resolução acabou contemplando as cinco reivindicações da comunidade global de pessoas que vivem com doenças raras e seus familiares, divulgadas em sua campanha prévia de mobilização: 1. Direitos humanos e inclusão: Participação e inclusão de pessoas que vivem com uma doença rara e suas famílias na sociedade e respeito aos seus direitos humanos; 2. Cuidados apropriados: Melhoria dos resultados sociais e de saúde com os cuidados e apoio apropriados dentro dos recursos existentes; 3. Estratégias nacionais: Promoção de estratégias e medidas nacionais para não deixar ninguém para trás; 4. Reconhecimento no sistema das Nações Unidas: Integração e visibilidade da questão das doenças raras nas agências e programas da ONU; e 5. Monitoramento de progresso e implementação: Relatórios regulares do Secretariado da ONU para monitorar a implementação e o progresso sobre o status das pessoas que vivem com uma doença rara.
Resoluções da ONU não são vinculantes. Dito de outro modo, os Estados-Membros (entre os quais se inclui o Brasil) não são obrigados a cumpri-las. Mas as pessoas que vivem com doenças raras têm o que comemorar. Em seu preâmbulo, a Resolução cita tratados internacionais de Direitos Humanos que a amparam. Além disso, ela também busca inspiração na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, como já mencionado.
Neste sentido, a resolução reinscreve o debate sobre as doenças raras no campo das melhores práticas em Saúde Pública/Saúde Coletiva, com seu foco em justiça social, desenvolvimento sustentável e direitos humanos. Isto abre a possibilidade de um diálogo mais profícuo entre as associações de pacientes, gestores, indústria e comunidade acadêmica em busca da superação de um desafio de tal magnitude.
Pode representar a revisão da abordagem regulatória dominante e das interpretações teóricas sobre o tema. Em continentes como as Américas, Oceania e Europa, o debate nestas esferas tem girado principalmente em torno de considerações econômicas, derivadas de estudos de farmacoeconomia e de discussões acerca da custo-efetividade (ou não) dos tratamentos medicamentosos, que de resto só tratam cerca de 5% das 6 mil a 8 mil doenças raras que se estima existirem na atualidade.
Com imaginários códigos de barras estampados em suas frontes, pelo dispositivo da assistência farmacêutica que os cerca, os doentes raros têm sido invariavelmente tratados como cidadãos de segunda classe, e sua saúde e bem-estar em perspectiva ampliada têm sido vistos como uma despesa, e não um investimento. Nesse sentido, suas vidas têm preço, o que contraria os princípios da Reforma Sanitária Brasileira .
O reenquadramento do debate propiciado pela resolução, que traz para o centro das discussões questões de equidade em saúde e igualdade, pode ensejar uma mirada mais ampla da parte dos gestores de saúde e demais stakeholders acerca da problemática das doenças raras, com ênfase na promoção do desenvolvimento inclusivo e sustentável.
É urgente mudar a perspectiva no trato da questão, visando integrar competências e conhecimentos em um esforço de toda a sociedade para assegurar vidas saudáveis e bem-estar para todos e todas, incluídas aí as pessoas que vivem com uma doença rara e familiares.
Cláudio Cordovil Oliveira é pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacinal de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Estuda o fenômeno das doenças raras desde 2007.
Texto originalmente publicado no blog de sua autoria Academia de Pacientes.
Selva Souza
Presidente Fundadora da Aliança Cavernoma Brasil
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